quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Dama do Flamengo

O passo apressado descansa no aconchego do sol de outono enquanto o ônibus não vem.
A demora um tanto aflita é interrompida pela imagem que vinha ao longe. Não a identifica de imediato, mas logo percebe tratar-se de uma mulher esguia atravessando a rua e caminhando em sua direção.
O chapéu azul claro de lado esconde o cabelo negro e um vestido longo preto com detalhes em vermelho faz lembrar dona Maria Padilha, mas não é o caso. Uma bolsa a tiracolo e seu andar outro apontam para uma dama antiga, daquelas raras hoje em dia.
Conforme se aproxima, esboça algumas palavras - aleatórias.
É preciso pouca distância para notar o engano: as curvas delicadas do seu corpo e a pele alva como a claridade daquela manhã, desfiguram-se rapidamente em músculos e manchas.
O que antes balbuciava, agora, defronte à menina, pergunta. Nem bem ouve o som da sua voz e logo se espanta com o único dente daquela boca. As mãos grandes seguram a bolsa e debaixo das unhas pode ver sangue. Repete então, secando a menina dos pés à cabeça: “você tem uma moeda?” De cabeça baixa procura não encarar a transfigura e, com medo, só consegue balançá-la para os lados, em sinal negativo.
Tal qual seu corpo, logo o olhar se modifica e, após encará-la novamente, diz com leve alteração na voz: “você é digna de pena!” e sai andando pela orla do Flamengo.
O barulho do ônibus que encosta na calçada desperta a menina atrasada que sobe as escadas com pressa para não perder seu compromisso.

*Foto de Elisa Gaivota.

10 comentários:

  1. A cena verídica retrata a realidade cotidiana das ruas do Rio. Dá para sentir a surpresa e o medo da menina. Digno de pena é o "personagem andrógeno" citado, que vaga pelas ruas e sobrevive da caridade alheia para sobreviver. Na realidade ele sente pena de si mesmo e não dos outros.Parabéns pelo texto. Escreva mais.

    ResponderExcluir
  2. O que me impressiona? Essa metamorfose que ora é música, ora é pema escrito sem nenhum acorde! Não sei de onde isso vem; essa inspiração e por isso mesmo seja assim, tão abstrato entender ou decifrar esse turbilhão de sensações boas, cada vez que ouço ou leio, o que quase sempre se confunde com o que se vê ou com o que se pensa!

    Não sei se congratulo, a cronista, a musicista, a cidadã sensível, ou a observadora atenta! Na dúvida...Parabenizo a Gabriela, vida longa a sua sensibilidade encantadora.

    ResponderExcluir
  3. obrigada pelas observações e pelo carinho de estar sempre lendo e comentando o blog! Isso sim é um incentivo à produção! Beijos nas duas :)

    ResponderExcluir
  4. Excelente narrativa. A sutileza nas construções da imagem narrada, a escolha e organização do enredo denotam talento de escritora. Continue.

    ResponderExcluir
  5. Vi uma cena hoje que merecia o seu olhar atento também. Uma moradora de rua, adulta, a empurrar com encantamento uma bicicletinha de brinquedo... resgatando sua infância perdida...

    abraços, Roberta

    ResponderExcluir
  6. Gosto desses momentos inusitados, vejo a simples e mais bela poesia neles. Seu olhar de encantamento pra esta mulher deve ter sido bonito da mesma forma. Obrigada pelo comentário e espero você mais vezes pro aqui! bjos

    ResponderExcluir
  7. Voltarei sim, Gabriela! Conheci seu blog através do Cavaleiro Andante, apreciei, comentei, e descobri que já te conhecia ao vivo, já nos topamos em circuntâncias musicais desse Rio de meu Deus!

    Abraços, Roberta

    ResponderExcluir
  8. Estou vivendo algumas mudanças.. em breve escrevo mais coisas. Bjos :)

    ResponderExcluir